Arte digital tem sua expressão máxima no Sónar São Paulo 2012
“O espírito humano, quando se permite manifestar através da arte, invariavelmente irá criar grandeza. Portanto, não importa qual a mídia, qual o orçamento ou qual o veículo de distribuição, quando o ser humano faz algo tende a fazer coisas interessantes. Se você der a ele um martelo e um pedaço de madeira ele vai fazer algo interessante, se você der a ele um computador e uma rede de internet de alta velocidade, ele vai fazer algo interessante.”
– Depoimento do produtor norte-americano Moby ao documentário PressPausePlay que fez parte da programação do festival Sónar São Paulo 2012.
Desde meados dos anos 90 o festival espanhol Sónar agrega novas manifestações musicais, principalmente a electronica, além de programar apresentações de arte de novas mídias como vídeos, projeções e apresentações de VJs. O berço do evento é Barcelona, na Catalúnia, onde nasceram artistas e gênios como Salvador Dali, Antoni Gaudi e Joan Miró o que mostra que a região é extremamente fértil em arte e audácia. Segundo esses preceitos o festival se coloca como um plenário artístico audacioso, amigável aos novos artistas e à revolução digital nas artes.
Estive no Sónar de Barcelona em 2001, sua oitava edição. Ali vi pela primeira vez o teatro de fim de mundo do DJ de techno Jeff Mills, o auge do sub-gênero tech-house com Layo&Buschuaka e Craig Richards, ao lado de monstros sagrados da house music como Little Louis Vega e Frankie Knuckles, além de artistas que mostravam os primeiros passos do electro que dominou a cena eletrônica principalmente na segunda metade dos anos 00.
Em 2001 a música eletrônica mundial estava em seu melhor momento, tanto em termos de talento como de mercado. Na feira do Sónar vendiam-se CDs e vinis quase impossíveis de se encontrar em lojas em qualquer parte do mundo, produtos de selos e gravadoras que brotavam às centenas em Londres, Berlim, Paris, Amsterdam, Nova Iorque e outras cidades do planeta, inclusive do Brasil. Esse entusiasmo todo foi um momento breve que em dois ou três anos se transformou em efeito cascata de falências de pequenos selos e gravadoras, abalroados pelos downloads. A mesma revolução digital que proporcionou uma nova forma simples, prática e democrática de fazer música também enterrou os sonhos de muita gente que queria viver produzindo música, principalmente eletrônica.
Em 2004 aconteceu o primeiro Sónar São Paulo que teve na verdade uma identidade dúbia e foi também chamado de Nokia Trends. Apesar do erro crasso de marketing o festival que teve dois nomes foi um grande sucesso de público com uma ótima programação que se dividiu entre o Instituto Tomie Ohtake, o Credicard Hall e o Teatro Abril. O Tomie Ohtake ficou com a programação diurna de showcases, workshops, palestras e feira. Já o Credicard Hall sediou as apresentações de grandes nomes da música pop e da electronica como Laurent Garnier, Ladytron (DJ set) e LCD Soundsystem.
O Sónar hoje vem fazendo edições pequenas ou grandes em várias cidades do mundo como Tóquio e Cidade do Cabo, além de continuar com sua edição principal anual em Barcelona todo mês de junho, a qual faz parte do circuito de verão dos grandes festivais europeus ao lado de Glastonbury e Creamfields.
Oito anos depois de sua primeira edição brasileira o Sónar aportou novamente em São Paulo, desta vez com produção da Dream Factory de Roberto Medina, leia-se Rock in Rio e agora com um patrocinador master que não reivindicou o nome do evento, os salgadinhos Doritos. No último fim de semana o Parque e o Palácio das Convenções do Anhembi receberam o Sónar SP 2012 com uma programação mais enxuta que em 2004, mas não menos abrangente, mostrando um bom apanhado do que se faz hoje dentro do que é chamado pelo festival de nova música e arte de novas mídias, ou seja a arte da revolução digital.
No campo das novas mídias além das palestras na programação SonarPro com workshops de equipamentos e software, alguns VJs que acompanharam as apresentações mostraram como se pode usar a criatividade e a espontaneidade em uma apresentação ao vivo utilizando tecnologia de ponta em projeções e iluminação. Nessa seara de VJs descata-se a apresentação do alemão Alva Noto que acompanhou Ryuichi Sakamoto, além do coletivo que ilustrou a apresentação do Mogwai.
Visualmente ainda se pode destacar a apresentação do produtor Squarepusher que num palco escuro, utilizando um capacete-máscara iluminado e projeções e iluminação de LED sincronizados, criou um show de música “robótica” altamente vigoroso, beirando a histeria das máquinas.
A programação de filmes teve como destaque o documentário PressPausePlay que pode ser baixado gratuitamente da web. O filme mostra depoimentos de artistas, cineastas e produtores que trabalham com o que há de mais inovador em tecnologia nas artes, gente como Moby ou a cineasta prodígio Lena Dunham, criadora de Girls, novo e bem sucedido seriado da HBO. Produtores musicais, editores de vídeo e escritores que já lançaram livros em mídia eletrônica falam sobre seu trabalho e os efeitos da revolução digital em suas áreas. Se num momento houve um exacerbado entusiasmo com a democratização da arte proporcionada pela revolução digital, agora se começa a perceber os perigos da massificação do papel de artista que pode significar uma mediocrização globalizada. A hegemonia da perfeição fria da produção computadorizada musical ou audiovisual, capaz de mascarar qualquer tipo de ruído ou imperfeição, pode significar um grande retrocesso na arte. Aquilo que se pensava como sendo uma nova era de criatividade hoje não enche os olhos de produtores e artistas sedentos por espontaneidade e vulnerabilidade.
Num cenário saturado e um pouco sombrio em relação às novas mídias e formas de produção musical e audiovisual o Sónar, que se dispõe a mostrar para um público que sofre de excesso de informação o que há de mais novo e interessante nas artes eletrônicas, tem uma tarefa difícil e muito importante de resgatar os fundamentos dessa arte e ao mesmo tempo revelar os novos artistas que estão levando esses preceitos a um novo patamar.
A presença do Kraftwerk na programação marcou esse contraponto entre fundamento e novidade. Entrando na programação de última hora no lugar da cantora Björk, que cancelou sua vinda ao Brasil por conta de um problema nas cordas vocais, a banda alemã referência máxima da electronica veio pela terceira vez ao país e mostrou um show impecável com seus grandes sucessos, principalmente os dos anos 70, em roupagem completamente atual, já que da formação original hoje só resta Ralf Hütter. Num cenário em 3D e com projeções de imagens antológicas dos álbuns da banda, os quatro integrantes do Kraftwerk mais uma vez levaram o público à catarse, público este composto por fãs fervorosos de todas as idades, enebriados pelo som das máquinas da banda alemã que influenciou toda a música dance como a conhecemos hoje.
Nesse mesmo palco do SonarClub o festival recebeu nomes de ponta do pop atual que fazem bom uso das novas formas de produção musical como o Chromeo e o Justice. Os dois duos mostraram ótimas performances em cenários muito bem ambientados com apresentações ao vivo que unem à música eletrônica o contagiante gingado do funk e do r&b no caso do Chromeo e o vigor e a atitude punk rock no caso do Justice. As duas apresentações foram extremamente cativantes e engajaram o público que cantava as músicas e dançava enlouquecido.
Difícil num festival é conseguir aproveitar todas as atrações em todos os palcos, principalmente quando muitas delas estão programadas para o mesmo horário, como foi o caso do Mogwai que tocou no palco SonarHall no mesmo horário do show de Cee Lo Green no SonarClub. O cantor americano não chegou a empolgar tanto quanto na época não tão longínqua do Gnarls Barkley, mostrando que o papel do produtor é imprescindível. A dupla Gnarls Barkley contava com o vozeirão de Cee Lo Green e a maestria para criar arranjos do produtor Danger Mouse. Enquanto Green (sem Mouse) tentava esquentar o público no palco maior, no ótimo Palácio das Convenções do Anhembi se apresetavam os britânicos do Mogwai, banda que une estilo indie com electronica. O resultado foi um rock progressivo do novo milênio que fez cair o queixo de muita gente. Com certeza uma das melhores apresentações do Sónar São Paulo 2012.
Outro dilema foi a apresentação de Marky e Patife acontecendo no mesmo horário do ótimo show dos canadenses do Chromeo. Saí do show do Chromeo e fui dar uma espiada no palco SonarVillage e lá estavam os dois parceiros de longa data dando um banho de batidas indecifráveis e potentes, entusiasmo, alegria brasileira e experiência nas picapes, num back to back histórico. Valeu a pena deixar o palco principal para prestigiar nossa prata da casa em sua melhor forma.
No dia seguinte foi a vez de abdicar do palco principal em favor do experimental SonarHall, mais uma vez sem arrependimento. No mesmo horário do Justice o britânico James Blake fazia sua apresentação ao vivo no Palácio das Convenções. Um contraponto etéreo colocado pelo produtor de 23 anos com seu “pós dubstep” com influências de jazz e r&b. Seja qual for o rótulo ou sub-gênero, James Blake mostrou que não há limites para a criatividade e o talento artístico.
Se a produção musical atual sofre com o excesso de perfeição e informação, ponto principal da discussão do documentário PressPausePlay, o Sónar São Paulo 2012 mostrou que existem artistas que estão conseguindo expressar espontaneidade e vulnerabilidade através das mídias eletrônicas, sejam os novos produtores, como James Blake e Chromeo, sejam os monstros sagrados da electronica, como o Kraftwerk.