Roger Waters no Rio – Apoteose da desgraça


Bitsmag

0,,14567568-EX,00

Foi num descuido ou num ataque de amnésia que tive a infeliz idéia de ir ao show de Roger Waters no Rio, em março deste ano. O show, para quem conseguiu ver, foi lindíssimo e poderia ter sido um momento memorável, não fosse o evento no Rio de Janeiro e ainda por cima na “apoteose”. O problema é ir a um show estilo “arena rock” numa cidade em guerra, caótica e desgraçada como é o Rio de Janeiro hoje.

Saí de casa às sete da noite e só consegui chegar duas horas e meia depois no maldito sambódromo, aquela apoteose “brizolistica” podre. Apoteose do inferno, cravada no meio de favelas, no centro da cidade. Levei o Pietro, meu filho, que tem onze anos, porque ele agora toca bateria e quer saber tudo de rock. Eu tinha que levá-lo, afinal um show de Roger Waters é a coisa mais próxima que se pode esperar de um show de Pink Floyd, e os caras já estão com sessenta anos. E depois daquele reencontro lindo do Pink Floyd no Live 8, em 2005, que se reuniu depois de mais de vinte anos, ah, eu tinha que ir. E lá fomos nós.

Perto da estação do metrô Praça 11 me aproximei de um PM, perguntando onde ficava o portão 11 do sambódromo. E ele me responde, educado até: “Vai contornando o sambódromo, bla bla bla, mas pegue um táxi porque senão você VAI ser assaltada.” Fôfo ele, preocupado… Não fosse ele um POLICIAL PAGO PARA EVITAR ASSALTOS E DEFENDER A POPULAÇÃO. O que ele quis dizer foi: “vai mas reza, que só Deus garante…”

Bom, pegamos um táxi, para andar cem metros, ou seja, para ficarmos parados. O táxi andou uns dois metros e uma criatura começou a dar socos na janela onde estava meu filho. Era um guarda de trânsito querendo esganar o motorista do nosso táxi, porque ele teria avançado o sinal, sendo que estávamos parados. O motorista abriu a janela e o guarda fugiu. Veja bem o que estou dizendo: depois de sermos agredidos pelo guarda de trânsito com socos na janela do carro, ele fugiu. O motorista queria sair atrás dele. Imaginem: o guarda de trânsito fugindo do motorista de táxi. Disse para ele se acalmar e deixar “pra lá” e, finalmente, conseguimos andar mais alguns metros, só para acabar numa área interditada onde tivemos que fatalmente andar, faixa esta onde, segundo o PM preocupado e fôfo, eu seria inevitavelmente assaltada.

Os acórdes do britânico Roger Waters começavam britanicamente em ponto, e nós andando pela região de baixo meretrício em volta da “apoteose”. As prostitutas ‘hype’ da Daspu que me desculpem, mas pagar cento e quarenta reais para andar em região de baixo meretrício é programa para carioca (com tudo de pior que essa denominação implica hoje em dia). E me aproximo de outro PM: “Preciso chegar no portão 11″. E ele não responde nada, porque não sabe onde fica o portão 11. Quem me responde é um transeunte que me aconselha a não ir até lá. Mas eu tinha de ir, afinal minha digníssima credencial de imprensa estava lá e portanto eu não tinha ingresso. Pietro tinha a sua meia entrada, pela qual paguei a quantia módica de oitenta reais. Setenta do ingresso mais quatorze de taxa de ticketmaster, sendo que fui até a FNAC para comprar, portanto não entendo a título de que se paga os quatorze reais. São cerca de quarenta dólares, setenta dólares o ingresso cheio, mesmo preço de um ingresso decente no Metropolitan Opera de Nova York. E eu ali na “apoteose”, andando com meu filho pela região de baixo meretrício, supostamente ‘hype’ depois do advento das putas cariocas engajadas…

Chegamos finalmente ao fatídico portão 11. Um enxame de pessoas tentava entrar numa portinha onde os seguranças se abrigavam, do lado de dentro, evidentemente. Uma meia dúzia ali era realmente imprensa, o resto eram bicões esperando a porta abrir para invadirem. Foi então que pensei: “Mas eu nem sou fã de roqueiro dinossauro, imagina, devo aturar este perrengue?” Mas quando pensei que teria de voltar à região de baixo meretrício e à selva dos ladrões, depois de quase três horas de viagem (eu moro no Rio de Janeiro mesmo, ‘by the way’), sem ver o show e ainda pagando quarenta dólares por uma meia entrada… “Ah, agora eu vou entrar sim”, falou mais forte meu lado siciliano e calabrês…

E me meti no meio da confusão, com meu filho, pensando que talvez alguém tivesse pelo menos um pouco de cuidado com uma criança. Mas que mongolóide que eu sou… No Rio? Respeito pelas crianças? E ficamos lá, amassados no meio dos bicões, esperando sei lá eu o que, porque os seguranças, que pareciam mais garis, não abriam a porta de jeito nenhum. Podiam ter a decência de mandar um segurança para o lado de fora, para colocar ordem na “fila”, mas eles estavam visivelmente “com medo”. Foi quando apareceu uma jornalista e um camera man. O elemento, com um cigarro numa mão e a intimidadora câmera de TV na outra, foi empurrando e se colocou na minha frente, com a brasa do cigarro na minha cara. Pedi a ele para remover o cigarro da minha frente. E ele começou: “Estou no meio da rua, tenho o direito de fumar”, e também a máxima: “Eu sou carioca!!!!”. Então eu prontamente respondi: “Infelizmente… Quer dizer que além de colocar brasa de cigarro na cara dos outros você também mija na rua?”

Obviamente a assessoria de imprensa, vendo a presença de tão ilustríssimos cariocas, imediatamente os puxou para dentro e nem me perguntem como. Eu continuei do lado de fora, com meu filho chorando… Quando os seguranças ensaiaram abrir a porta de novo, um bicão barrigudo tentou passar na nossa frente e prostou sua enorme pança na cara do meu filho. Foi a conta… Era só o que faltava: meu filho se afogando na barriga fedorenta de um bicão no portão 11… Eu deveria ter berrado antes, todos ficaram apavorados! Acho que até o Roger Waters ouviu os meus gritos. Mas, finalmente, entramos.

Como se essa miséria não fosse suficiente, ao entrar Pietro percebeu que seu celular tinha sido roubado no amasso do portão. E começa a chorar de novo, quer ir embora. Enfim, perco mais alguns minutos bloqueando a linha de celular dele, para então tentarmos ver algo do show.

E na pista o hit de hipongas velhos “I Wish You Were Here”, com o público de bracinhos paro o alto fazendo “ola”… I wish I was so fucking far from here… Foi quando me dei conta que não ia ver nada. Cerca de trinta e cinco mil ingressos foram vendidos e pelo jeito todo mundo foi, além dos bicões que invadiram, os VIPs e a imprensa. Tinha também uma velhinha performática catando lata e gritando “mengooooo”, além dos temíveis assaltantes que deveriam estar do lado de fora do portão onze. Estes faziam a festa, já que não estavam lá para ver o show. Várias pessoas foram assaltadas dentro da “apoteose”.

Resistimos bravamente quase até o final do show e Pietro só gostou do porco inflável e da velhinha performática catadora de lata, porque foram as únicas coisas que ele conseguiu ver. Eu vi parte do telão atrás do palco, de vez em quando uns pontinhos, que deveriam ser as cabeças do povo da banda. O som, maravilhoso, se perdia naquela desgraça de falta de acústica dessa piada de concreto horrorosa que é a “apoteose”. Pietro ficou sentado na sala de imprensa, pois não aguentava mais ver gente vomitando e mijando do nosso lado, sendo que não tinhamos como fugir. Não podiamos ir para o centro da pista porque tinha um telão nos praticáveis da mesa de som que bloqueava o palco. Seriam lusitanos os “arquitetos” da montagem do show de Roger Waters? E a arquibancada? Essa é a piada maior: cada arquibancada da “apoteose” carioca só tem um acesso lateral e era impossível sequer chegar até esse acesso.

Ainda aguentamos até “Another Brick In The Wall”, única música do Pink Floyd que Pietro conhece e, pela maravilhosa experiência no show, vai continuar sendo a única…

Foto: Porco inflável solto no meio do show de Roger Waters no Rio. Irônico? (roubada deliberadamente do blog Rio Fanzine)

Bitsmag